quarta-feira, 23 de julho de 2014

sweet summer morning



Ele abriu os olhos, passou a mãozita no cabelo arrebitado e perguntou-lhe: é de manhã? Ela disse-lhe que sim. Vamos tomar o pequeno-almoço? Vamos. Veste-te sem fazer barulho. Eles ficam? Sim, não os acordes. Vamos só os dois? Sim, só os dois. Ele sorriu e saltou da cama. Ela empurrou-o gentilmente pela penumbra do quarto até à casa de banho. Lava a cara. E veste um casaco, o dia está tristonho. O concerto, correu bem? Correu meu querido, mas acabou muito tarde. Eles ficam mesmo todos a dormir? Sim, hoje somos só nós. Eu quero ovos, achas que há ovos? Há sempre ovos, não te preocupes. Também quero bolas de Berlim. Sem creme. E leite. E água. Tenho muita fome e muita sede. Percorreram, de mãos dadas, o longo corredor de alcatifa. Desceram no elevador panorâmico. O mar, tingido de escuro pelo céu cinzento, enrolava lentamente na praia vazia. Está a chover? Quase. Esperemos que o sol apareça para podermos ir à praia. E à piscina, eu quero ir à piscina. Primeiro vamos à praia, piscina só ao final do dia. Dirigiram-se à sala de refeições. Vamos a tempo? Penso que sim, ainda não são dez e meia. Olha, há bolas de berlim. Tira só uma. São pequenas, vou levar duas. Talvez seja melhor levarmos para os manos. E para o pai, temos de levar uma para o pai. São deliciosas! Foram inventadas em Berlim? Imagino que sim… já comi algo parecido em Berlim mas não eram tão boas. Se as nossas são melhores do que as de Berlim porque é que lhes chamamos bolas de Berlim? Porque sim. Queres leite? Sim, e água. Vou buscar. Deixa, eu vou, eu sei onde está. Trouxe também dois croissants, para o Tomás. O Tomás gosta muito de croissants. Trouxe dois porque são pequenos. Vá, senta-te e come com calma, temos tempo. O que é que estes senhores estão a falar? Alemão? Não, alemão não é. É alguma língua do norte da Europa, mas não sei identificar. Mãe, porque é que nós estamos no princípio da Europa? A Europa começou aqui? Não. Estamos na pontinha da Europa mas… Então a Europa começou do outro lado? Não, é mais complexo. Depois explico-te. Explica agora. Não posso, vou buscar o meu café. E a América, como começou? A América, tal como existe hoje em dia, começou com os descobrimentos. Os portugueses, os espanhóis, os ingleses e outros atravessaram o oceano e encontraram a América. Em barcos? Sim. À vela? Sim. Iam todos juntos? Não, iam separados. O primeiro a chegar ficava com o país? Mais ou menos. Queres mais ovos? Não, estou bem. Vamos passear? Sim, boa ideia. Olha as bandeiras à porta do hotel: União Europeia, Portugal, Espanha, Angola… qual é a quinta? Não sei… Argélia talvez… Não mãe, a da Argélia é verde e branca e tem uma lua e uma estrela vermelhas. Vê no telefone qual é a bandeira que é vermelha com uma estrelinha verde. Agora não, tenho pouca bateria. Ok, eu vejo em casa no meu atlas. Vamos lá passear. Agarrou a mão dela e puxou-a por entre as esplanadas da marginal. O sol começava a espreitar, tímido, através das nuvens quando chegaram ao centro. Gostas de Sesimbra? Gosto. Já viste aquela muralha lá em cima? Parece a muralha da China. Não, a muralha da China é gigante, aquela é a muralha do castelo. Quantos quilómetros tem a muralha da China? Não sei. Mil? Mais, muito mais… Um milhão? Menos… depois eu vejo, ou vês tu, no teu atlas. Olha ali um mercado. Queres ir ver? Sim, claro. Entraram. É giro não é? Há muitas coisas para comprar. Tanto peixe tão fresquinho! E tantos legumes! Quero levar uma alface, tem bom aspecto. Uma alface não podemos levar, não vamos cozinhar. Ok, então vamos comprar o quê? Vamos comprar uma flor, que te parece? Parece-me bem. As flores estão ali ao fundo, anda. Que deseja menina? Não sei bem. O meu filho nunca tinha vindo a um mercado e quer comprar alguma coisa… O vendedor de flores agarrou num girassol, embrulhou o pé em papel de prata, e estendeu-lho. Toma. Para ti. Ofereço-to. É verdade que nunca tinhas vindo a um mercado? Sim, nunca tinha vindo a um mercado a sério. Mas já fui a muitos mini-mercados. O vendedor sorriu. Ele sorriu de volta, agradeceu o girassol e correu para a porta do mercado. Olha mãe, está sol! Vamos regressar. Sim, para irmos à praia. E depois à piscina! Gostaste do passeio? Gostei. E tu? Também. Gostas do meu girassol? Muito. É lindo. Vamos só tirar uma selfie com o teu girassol. Ficou bem? Ficou óptima. Anda, vamos contar aos manos que fomos a um mercado onde se vendia peixe, carne, fruta e flores. E vamos contar-lhes que recebemos um girassol. Tivemos muita sorte não tivemos, mãe? Ela agarrou-o com força. Tivemos meu amor, tivemos muita sorte.



Ps - Coisas que não sabia e passei a saber: as bolas de berlim são mesmo originárias da capital germânica e continuam a existir por aquelas bandas. A versão alemã é denominada berliner pfannkuchen (bolo berlinense de frigideira), berliner ballen ou simplesmente berliner; a bandeira vermelha com uma estrela verde ao centro é a bandeira de Marrocos; a muralha da China mede 21.196km.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Keep on rockin' in a wonderful word


A noite está amena. Ouvem-se ao longe as ondas a desmaiar lentamente no areal. O aroma a peixe grelhado flutua por entre as ruas estreitas de calçada. Os meninos já despacharam um robalo cada um. Eu que estive até agora, em contra-relógio, a separar as espinhas dos robalos dos meninos, preparo-me para atacar, finalmente, o meu jantar.
Olho as horas para confirmar quanto nos falta para apanhar o shuttle do Sr.Texugo. Há tempo. Bebo um gole de sangria. Respiro fundo. A vida pode ser maravilhosa.
Ainda não comi a primeira garfada quando uns pingos de chuva me despertam do meu sonho numa noite de verão. O Ti parece ler o pânico nos meus olhos e entre duas amêijoas, que roubou à carne de porco à alentejana dos avós, pergunta:

“No sítio para onde vão ver os concertos há tejadilho?”

O Tommy ri e explica-lhe que não, não há tejadilhos nos festivais.

“A sério? Avó, tens sorte por poder ficar connosco no hotel. A mãe, o pai e o avô têm mesmo de ir. Se ao menos não tivessem reservado o lugar no autocarro… agora não há nada a fazer. Que grande azar.”

Lá fomos. A chuva deixou a Herdade do Cabeço da Flauta pouco antes de chegarmos ao recinto. Sem necessidade de tejadilho vi, ouvi, mais do que tudo senti as quase três horas de espectáculo do (sempre grande) Eddie Vedder. Tocou o Masters of War, o You've got to hide your love away, o Black e até, pela primeira vez ao vivo, o ImagineQue tivesse chovido a cântaros. Tinha sido épico na mesma. A vida é maravilhosa.  


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Um iogurte é um iogurte


Os anúncios de iogurtes magros enervam-me. De toda a publicidade que nos entra olhos e alma dentro diariamente a de iogurtes magros é, de longe, a que mais me irrita. Mais do que a da Cofidis e a da Olx. Mais do que a das seguradoras. Mais do que a de detergentes da louça e da roupa. Mais do que a do Jumbo, do Continente e do Pingo Doce juntas. Mais do que qualquer outra. Passo a explicar porquê:

Eu sou daquelas que devia comer tudo quanto é alimento com teor reduzido de gordura. Sou daquelas que não devia tocar em doces. Sou daquelas que não devia comer arroz. Sou daquelas que devia comer apenas uma peça de fruta ou um iogurte entre as refeições. Todas as manhãs olho de esguelha a pilha de jeans que não servem mas dos quais não me desfaço na esperança de ainda voltar a caber neles. É aquele momento do dia em que sinto que está na hora de fazer algum esforço para vestir uns números abaixo. São breves instantes de consciência da minha (falta de) forma. Digo breves pois assim que fecho o roupeiro não penso mais no assunto e como uma taça de Chocapic. Eu preencho os requisitos todos para ser o target de qualquer campanha de iogurtes magros. Sou das que têm de ser convencidas. E para me convencerem bastava que usassem única e simplesmente o argumento de que para sermos magras temos de parar de comer porcarias e começar a comer iogurtes. E que explicassem que um iogurte magro pode saber ao mesmo do que um normal. Mesmo sabor, metade das calorias. Perfeito. Mas não. As marcas apresentam os iogurtes magros como uma deliciosa tentação que está ali ao nosso alcance, permitindo-nos o éden sem nos aumentar uns centímetros às coxas. 

Vejamos alguns exemplos:

"...ao fim destes anos todos, e três filhos depois, a minha mulher  está cada vez mais bonita, menos quando lhe tiram o iogurte..."

Não brinquem comigo. Uma mãe de três filhos tem oportunidades de sobra para virar um bicho sem que metam iogurtes ao barulho. Mais, uma mãe de três filhos está preparada para ver comida a desaparecer sem que isso a incomode. Uma mãe de três filhos come as asas do frango e as côdeas do pão. A falta de um determinado iogurte no frigorífico não incomoda uma mãe de três filhos.

"Adoro miminhos. Um folhadinho de manhã, uns docinhos ao lanche. Mas agora chega! Vou trocar o meu snack por este zero por cento! Yum!"

Só num mundo irreal é que uma mulher diz uma frase destas com entusiasmo e um sorriso rasgado no rosto.

"...prometo não renunciar a nada e aproveitar!"

Boa. Não vamos renunciar a nada. Vamos partir para a loucura e comer iogurtes magros! Uhuuuuu!

"Zero. Puro prazer."

Puro prazer? Puro prazer é uma torrada com queijo e doce de morango. Puro prazer é uma fatia gigante de pão com nutela. Puro prazer é uma tosta carregada de manteiga de amendoim. Puro prazer é comer leite condensado à colher. Um iogurte magro, é na melhor das hipóteses, um perfeito substituto de um iogurte normal. Um perfeito substituto de algo que é tudo, menos puro prazer.

Eu sei que devo comer iogurtes. Magros, de preferência. Mas agradeço que deixem de fazer de mim parva e assumam de uma vez por todas que um iogurte é tão somente um iogurte. Não tem gordura? Óptimo. Se estiver com desconto em cartão, tanto melhor.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Friday i'm in love



Sexta-feira. Nove e meia da noite. Saio da ginástica sem poder com uma gata pelo rabo. O menor dos meus problemas, já que a minha gata faz questão de não me deixar pegar-lhe, e dadas as tarefas que ainda estão pela frente: ir buscar os meninos a casa dos avós, carregar meninos e tralhas dos meninos para o carro, do carro para o elevador e do elevador para casa, enfiar os meninos mais novos na banheira, gastar um mês de vida a convencê-los a sair de lá, gastar outro mês a explicar ao mais velho que “banho agora” ou “banho amanhã de manhã” não é a mesma coisa, tentar impedir os rapazes de começarem a jogar o que quer que seja às onze da noite, colar cromos e fazer pulseiras de elásticos com a Té enquanto os mais velhos jogam aquilo que não os consegui impedir de jogar, arrastá-los para o meu quarto, contar uma história, ver um pedaço do Frozen, ver um pedaço do Lego, ver um pedaço do Chicago Fire, fazer o transbordo da bela e dos belos adormecidos da minha para as suas camas, tomar banho, secar o cabelo, estender uma (ou duas) máquinas de roupa, varrer a areia do chão da casa de banho, desligar luzes e aparelhos, enviar uma (ou duas) sms ao André a cobrar-lhe o facto de ter ido jantar fora, sentar-me finalmente no sofá, gastar dez minutos a escolher um filme, adormecer passados outros dez. Vá que é sexta.

Assim que entro em casa dos meus pais percebo que o simples acto de os tirar dali se reveste hoje de um grau de dificuldade extra uma vez que o Tommy está no pátio, com uma brazuca nos pés, empenhado em "fazer a-melhor-finta-de-sempre" e o Ti está incumbido de filmar a mesma para memória futura. Estimo que se sucedam cento e cinquenta quase-melhores-fintas-de-sempre filmadas de vários ângulos. Vale-me a confiança (cega) que tenho na incapacidade da bateria do iPhone de chegar à vigésima filmagem. Decido ir pegando na Té que está refastelada no colo do avô a jogar qualquer coisa no telemóvel da avó.

“Té, vamos lá calçar as sapatilhas, temos de ir embora.”

“Espera mamã. Tou a xogar ête xogo.”

Arregalo-lhe os olhos. Está ao colo do avô e isso confere-lhe uma inegável superprotecção em relação aos meus olhares lancinantes. Sorri e faz a sua proposta:

“Quando perdê, tá bem?”

“E se não perderes?”

Bate com os joelhos um no outro, encolhe os ombros, enrosca-se um bocadinho mais nos braços do meu pai e diz-me, lenta e docemente, como que explicando algo mesmo muito simples a alguém mesmo muito burro:

“Se não perdê… ganho.”

Não sei se ganhou ou perdeu mas não houve avô que lhe valesse no momento em que decidi agarrá-la e levá-la para o carro. Pelo caminho arrastei o Neymar e o Scorsese comigo. Ainda estou para ver como ficou o vídeo. Se for mesmo a-melhor-finta-de-sempre, eu depois mostro.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Let it Go



Não há como negar a realidade. Cá por casa, atrás de uma obsessão vem sempre outra, maior e mais persistente. A última pertence à Té e é o Frozen. Só quer ver o Frozen, só quer ouvir as músicas do Frozen, só quer falar do Frozen. A fixação é tal que, à saída da festa de final de ano não vinha entusiasmada com as brilhantes actuações para as quais ensaiaram semanas a fio mas sim com o facto de, num dos intervalos, ter passado o Let it Go.

Gostaste da tua festa, Tété? Sim! Tocou o Let it Go! Tocou o Let it Go!

Ouvimos o Let it go a todo o momento, em loop, dia após dia, semana após semana. Ora em casa, ora no carro, ora no gadget que está mais à mão. Ora na versão da Idina Menzel, ora na versão da Demi Lovato, ora na minha preferida, a versão da Té y sus hermanos. 

A imagem dos três, em pijama, no meu quarto, com os sorrisos iluminados apenas pelos tons azuis do filme, a cantar o Let it Go a plenos pulmões há-de ficar para sempre guardada no meu baú de memórias, não só por ser uma imagem absolutamente enternecedora mas, principalmente, pelo número incontável de vezes que se repetiu nos últimos tempos.

Estranhamente, quanto mais ouço o Let it Go mais gosto do Let it Go. Digo estranhamente pois nunca liguei nem um bocadinho a trinados vocais envolvidos por elaborados arranjos musicais. Sempre tive alergia às Celine Dion, às Mariah Carey e às Adele deste mundo. Até dar por mim a ouvir o cd do Frozen sozinha no carro e a ficar arrepiada com o Let it Go. Até dar por mim a emocionar-me com o Let it Go como se de uma das minhas músicas preferidas de Pearl Jam se tratasse. 

Não há como negar a realidade. Gosto do Let it Go. Gosto mesmo muito do Let it Go. É daquelas canções que, daqui a muitos anos, me vai fazer regressar aos dias em que os meus meninos gostavam de adormecer na minha cama, embalados por musicais da Disney. 

A música tem este poder de nos fazer viajar no tempo. O amor, por outro lado, permite que nos deixemos apaixonar pela mais impensável das canções.

Qual não é o meu espanto quando descubro que o Eddie Vedder fez há dias, em Milão, uma curta cover do Let it Go por entre os acordes do Daughter. Os críticos mais puristas dizem que foi o fim da linha. Eu digo que foi mágico.